Íntegra do discurso do Papa Francisco à Cúria

"O Senhor oferece-nos a oportunidade de nos encontrarmos, também este ano, para este momento de comunhão que reforça a nossa fraternidade e está enraizado na contemplação do amor de Deus que Se nos revela no Natal", disse o Papa Francisco aos membros da Cúria reunidos na Sala Clementina na manhã deste sábado para as felicitações de Natal.

Discurso do Santo Padre à Cúria Romana

na apresentação de votos natalícios

(21 de dezembro de 2019)

«E o Verbo fez-Se homem e veio habitar connosco» (Jo 1, 14).

Queridos irmãos e irmãs!

Para todos vós, as minhas cordiais boas-vindas. Agradeço ao Cardeal Ângelo Sodano as palavras que me dirigiu e sobretudo quero, em nome pessoal e também dos membros do Colégio Cardinalício, manifestar-lhe viva gratidão pelo serviço precioso e diligente que desempenhou durante muitos anos como Decano com disponibilidade, dedicação, eficiência e grande capacidade organizativa e coordenadora. Com o modo de agir "rassa nostrana", como diria Nino Costa [escritor piemontês].  De coração obrigado, Eminência! Agora cabe aos Cardeais Bispos eleger um novo decano; espero que eles escolham alguém que se dedique em tempo integral a este papel tão importante. Obrigado.

A vós que aqui estais, aos vossos colaboradores, a todas as pessoas que prestam serviço na Cúria, bem como aos Representantes Pontifícios e a quantos os apoiam, desejo um santo e feliz Natal. E aos votos natalícios junto o reconhecimento pela dedicação diária colocada ao serviço da Igreja. Muito obrigado!

O Senhor oferece-nos a oportunidade de nos encontrarmos, também este ano, para este momento de comunhão que reforça a nossa fraternidade e está enraizado na contemplação do amor de Deus que Se nos revela no Natal. De facto, «o nascimento de Cristo – escreveu um místico do nosso tempo – é o testemunho mais forte e eloquente de quanto Deus amou o homem. Amou-o com um amor pessoal. É por isso que tomou um corpo humano, ao qual Se uniu e assumiu para sempre. O nascimento de Cristo é, em si mesmo, uma “aliança de amor” estipulada para sempre entre Deus e o homem».[1] E São Clemente de Alexandria escreve: «Para isto Ele [Cristo] desceu; para isto Se revestiu de humanidade; para isto sofreu voluntariamente o que padecem os homens, para que, depois de Se ter confrontado com a nossa fraqueza que amou, pudesse em troca confrontar-nos com a sua força».[2]

À vista de tanta benevolência e tanto amor, a troca das «Boas-Festas» natalícias é igualmente ocasião para acolhermos de modo novo o seu mandamento: «Que vos ameis uns aos outros assim como Eu vos amei. Por isto é que todos conhecerão que sois meus discípulos: se vos amardes uns aos outros» (Jo 13, 34-35). Aqui, Jesus não nos pede para O amarmos a Ele em resposta ao seu amor por nós; mas, sim, para nos amarmos uns aos outros com o seu próprio amor. Por outras palavras, pede-nos para sermos semelhantes a Ele, porque Ele Se fez semelhante a nós. Oxalá o Natal «nos encontre – exorta o Santo cardeal Newman – cada vez mais semelhantes Àquele que, neste tempo, Se tornou menino por nosso amor; que em cada novo Natal nos encontre mais simples, mais humildes, mais santos, mais caridosos, mais resignados, mais alegres, mais repletos de Deus».[3] E acrescenta: «Este é o tempo da inocência, da pureza, da mansidão, da alegria, da paz».[4]

Pensando em Newman, vem-nos à mente outra afirmação dele bem conhecida – quase um aforismo –, presente na sua obra O desenvolvimento da doutrina cristã, que histórica e espiritualmente se situa na encruzilhada da sua entrada na Igreja Católica. Ei-la: «Aqui, na terra, viver é mudar; e a perfeição é o resultado de muitas transformações».[5] Obviamente, não se trata de procurar a mudança por si mesma nem de seguir as modas, mas de ter a convicção de que o desenvolvimento e o crescimento são a caraterística da vida terrena e humana, enquanto no centro de tudo, segundo a perspetiva do crente, está a estabilidade de Deus.[6]

Para Newman, a mudança era conversão, isto é, uma transformação interior.[7] Na realidade, a vida cristã é um caminho, uma peregrinação. A história bíblica é, toda ela, um caminho, marcado por começos e recomeços; como sucedeu com Abraão; como sucedeu com quantos na Galileia, dois mil anos atrás, se puseram a caminho para seguir Jesus: «E, depois de terem reconduzido os barcos para terra, deixaram tudo e seguiram Jesus» (Lc 5, 11). Desde então, a história do povo de Deus – a história da Igreja – está sempre marcada por partidas, deslocações, mudanças. Obviamente trata-se, não tanto de um caminho puramente geográfico, como sobretudo simbólico: é um convite a descobrir o movimento do coração que, paradoxalmente, tem necessidade de partir para poder permanecer, de mudar para poder ser fiel.[8]

Tudo isto se reveste duma valência particular no nosso tempo, porque estamos a viver, não simplesmente uma época de mudanças, mas uma mudança de época. Encontramo-nos, portanto, num daqueles momentos em que as mudanças já não são lineares, mas epocais; constituem opções que transformam rapidamente o modo de viver, de se relacionar, de comunicar e elaborar o pensamento, de comunicar entre as gerações humanas e de compreender e viver a fé e a ciência. Muitas vezes acontece viver a mudança limitando-se a envergar um vestido novo e, depois, permanecer como se era antes. Lembro-me da expressão enigmática que se lê num famoso romance italiano: «Se queremos que tudo fique como está, é preciso que tudo mude» (Il Gattopardo, de Giuseppe Tomasi de Lampedusa).

A atitude sadia é, antes, deixar-se questionar pelos desafios do tempo presente, individuando-os com as virtudes do discernimento, da parresia e da hypomoné. Então a mudança assumiria um aspeto completamente diferente: de elemento complementar, de contexto ou de pretexto, de paisagem exterior, tornar-se-ia cada vez mais humana e também mais cristã. Continuaria a ser uma mudança externa, mas realizada a partir do próprio centro do homem, isto é, uma conversão antropológica.[9]

Devemos iniciar processos e não ocupar espaços: «Deus manifesta-Se numa revelação histórica, no tempo. O tempo começa os processos, o espaço cristaliza-os. Deus encontra-Se no tempo, nos processos em curso. Não se deve privilegiar os espaços de poder relativamente aos tempos, mesmo longos, dos processos. Devemos preocupar-nos mais com iniciar processos do que com ocupar espaços. Deus manifesta-Se no tempo e está presente nos processos da história. Isto leva a privilegiar as ações que geram novas dinâmicas. E requer paciência, saber esperar».[10] A partir disto, somos solicitados a ler os sinais dos tempos com os olhos da fé, para que a orientação desta mudança «desperte novas e velhas questões com que é justo e necessário confrontar-se».[11]

Hoje, abordando o tema da mudança que se baseia principalmente na fidelidade ao depositum fidei e à Tradição, desejo voltar à implementação da reforma da Cúria Romana, reiterando que esta reforma nunca teve a presunção de proceder como se nada tivesse existido antes; pelo contrário, procurou-se valorizar quanto de bom se fez na complexa história da Cúria. É uma obrigação valorizar a sua história para construir um futuro que tenha bases sólidas, que tenha raízes e por isso possa ser fecundo. Fazer apelo à memória não significa ancorar-se na autoconservação, mas recordar a vida e a vitalidade dum percurso em desenvolvimento contínuo. A memória não é estática, mas dinâmica. Por sua natureza, implica movimento. E a tradição não é estática, é dinâmica, como dizia aquele grande homem [G. Mahler]: a tradição é a garantia do futuro e não a custódia das cinzas.

Queridos irmãos e irmãs!

Nos anteriores encontros de Natal, falei-vos dos critérios que inspiraram este trabalho de reforma. Dei também a razão de ser de algumas implementações já realizadas, quer definitivamente quer ad experimentum.[12] Em 2017, destaquei algumas novidades da organização da Cúria, como, por exemplo, a Terceira Secção da Secretaria de Estado, que está indo muito bem; ou as relações entre a Cúria Romana e as Igrejas particulares, lembrando também a prática antiga das Visitas ad limina Apostolorum; ou a estrutura de alguns Dicastérios, nomeadamente o das Igrejas Orientais e os Dicastérios para o diálogo ecuménico e inter-religioso e, de modo especial, com o Judaísmo.

No encontro de hoje, quero deter-me sobre outros Dicastérios vistos a partir do coração da reforma, ou seja, da primeira e mais importante tarefa da Igreja: a evangelização. São Paulo VI afirmou: «Evangelizar constitui, de facto, a graça e a vocação própria da Igreja, a sua mais profunda identidade. Ela existe para evangelizar».[13] Evangelii nuntiandi, que também hoje continua a ser o documento pastoral mais importante do pós-Concílio, e atual. Na realidade, o objetivo da reforma atual é que «os costumes, os estilos, os horários, a linguagem e toda a estrutura eclesial se tornem um canal proporcionado mais à evangelização do mundo atual que à autoconservação. A reforma das estruturas, que a conversão pastoral exige, só se pode entender neste sentido: fazer com que todas elas se tornem mais missionárias» (Francisco, Exort. ap. Evangelii gaudium, 27). E assim, inspirando-se precisamente neste magistério dos Sucessores de Pedro desde o Concílio Vaticano II até hoje, pensou-se em dar o título de Praedicate evangelium à nova Constituição Apostólica, em fase de elaboração, sobre a reforma da Cúria Romana. Isto é o comportamento missionário.

Nesta linha, pensei deter-me hoje nalguns Dicastérios da Cúria Romana cuja própria denominação já sugere uma explícita referência a tudo isso, ou seja, a Congregação para a Doutrina da Fé, a Congregação para a Evangelização dos Povos; mas penso também no Dicastério para a Comunicação e no Dicastério para o Serviço do Desenvolvimento Humano Integral.

Na época em que foram instituídas as primeiras duas Congregações citadas, era mais simples distinguir entre duas vertentes bastante claras: duma parte, um mundo cristão e, da outra, um mundo carecido ainda de ser evangelizado. Agora, esta situação já não existe. Efetivamente as populações que ainda não receberam o anúncio do Evangelho não vivem apenas nos Continentes não ocidentais, mas habitam em toda parte, especialmente nas enormes concentrações urbanas, requerendo também elas uma pastoral específica. Nas grandes cidades, precisamos de outros «mapas», outros paradigmas, que nos ajudem a situar novamente os nossos modos de pensar e as nossas atitudes. Irmãos e irmãs, já não estamos na cristandade! Hoje, já não somos os únicos que produzem cultura, nem os primeiros nem os mais ouvidos.[14] Por isso precisamos duma mudança de mentalidade pastoral, o que não significa passar para uma pastoral relativista. Já não estamos num regime de cristandade, porque a fé – especialmente na Europa, mas também em grande parte do Ocidente – já não constitui um pressuposto óbvio da vida habitual; na verdade, muitas vezes é negada, depreciada, marginalizada e ridicularizada. Destacou-o Bento XVI quando, ao proclamar o Ano da Fé (2012), escreveu: «Enquanto, no passado, era possível reconhecer um tecido cultural unitário, amplamente compartilhado no seu apelo aos conteúdos da fé e aos valores por ela inspirados, hoje parece que já não é assim em grandes setores da sociedade devido a uma profunda crise de fé que atingiu muitas pessoas».[15] E, em 2010, instituíra o Pontifício Conselho para a Promoção da Nova Evangelização, a fim de «promover uma renovada evangelização nos países onde já ressoou o primeiro anúncio da fé e estão presentes Igrejas de antiga fundação, mas que estão a passar por uma progressiva secularização da sociedade e a viver uma espécie de “eclipse do sentido de Deus”, que constituem um desafio a encontrar meios adequados para voltar a propor a verdade perene do Evangelho de Cristo».[16] Às vezes, conversei sobre isso com alguns de vocês ... Penso nos cinco países que encheram o mundo de missionários – falei a vocês quais são - e hoje eles não têm recursos vocacionais para ir em frente. E este é o mundo atual.

A bem da verdade, não foi de forma improvisa que se chegou a esta perceção de que a mudança de época coloca sérios interrogativos quanto à identidade da nossa fé.[17] Neste contexto, há que inserir também a expressão «nova evangelização» adotada por São João Paulo II na Encíclica Redemptoris missio: «A Igreja deve, hoje, enfrentar outros desafios, lançando-se para novas fronteiras, quer na primeira missão ad gentes, quer na nova evangelização dos povos que já receberam o anúncio de Cristo» (n. 30). Há necessidade duma nova evangelização, ou reevangelização (cf. n. 33).

Tudo isso supõe, necessariamente, mudanças e novas focalizações de atenção também nos Dicastérios acima mencionados, bem como em toda a Cúria.[18]

Gostaria de tecer algumas considerações também sobre o recém-criado Dicastério para a Comunicação. A perspetiva que se nos depara é a da mudança de época, pois «largas faixas da humanidade vivem mergulhadas [no ambiente digital] de maneira ordinária e contínua. Já não se trata apenas de “usar” instrumentos de comunicação, mas de viver numa cultura amplamente digitalizada que tem impactos muito profundos na noção de tempo e espaço, na perceção de si mesmo, dos outros e do mundo, na maneira de comunicar, aprender, obter informações, entrar em relação com os outros. Uma abordagem da realidade, que tende a privilegiar a imagem relativamente à escuta e à leitura, influencia o modo de aprender e o desenvolvimento do sentido crítico» (Francisco, Exort. ap. pós-sinodal Christus vivit, 86).

Assim, foi confiada ao Dicastério para a Comunicação a tarefa de incorporar numa nova instituição os nove entes que, segundo várias modalidades e com diferentes tarefas, se ocupavam anteriormente de comunicação: o Conselho Pontifício para as Comunicações Sociais, a Sala de Imprensa da Santa Sé, a Tipografia Vaticana, a Livraria Editora Vaticana, o jornal L’Osservatore Romano, a Rádio Vaticana, o Centro Televisivo Vaticano, o Serviço da Internet Vaticana, o Serviço Fotográfico. Entretanto, na linha do que ficou dito, esta unificação não se propunha simplesmente ser um agrupamento de «coordenação», mas harmonizar os diferentes componentes para produzir uma melhor oferta de serviços e também e ter uma linha editorial crescente.

A nova cultura, marcada por fatores de convergência e presença multimédia, precisa duma resposta adequada da Sé Apostólica no campo da comunicação. Hoje, em vez de serviços diversificados, prevalece a forma multimédia, e isto marca também o modo de os conceber, configurar e implementar. Tudo isto implica, juntamente com a mudança cultural, uma conversão institucional e pessoal para passar dum trabalho em compartimentos estanques – no melhor dos casos, tinham alguma coordenação – a um trabalho intrinsecamente conexo, em sinergia.

Queridos irmãos e irmãs!

Muitas das coisas ditas até agora valem também, em linha de princípio, para o Dicastério para o Serviço do Desenvolvimento Humano Integral. Também este foi criado recentemente para dar resposta às mudanças verificadas a nível global, implementando a confluência de quatro Conselhos Pontifícios anteriores: Justiça e Paz, Cor Unum, Pastoral dos Migrantes e Agentes Sanitários. A coerência das tarefas confiadas a este Dicastério aparece sinteticamente lembrada pelo exórdio do Motu proprio Humanam progressionem, que o instituiu: «Em todo o seu ser e obrar, a Igreja está chamada a promover o desenvolvimento integral do homem à luz do Evangelho. Este des

21/12/2019

Fonte: https://www.vaticannews.va/pt/papa/news/2019-12/papa-francisco-discurso-natal-curia-romana.html